A vista

Pareço outra pessoa, estou fora de mim. Fui uma simples espectadora de todas as pequenas tragédias que precederam esse dia, as quais não pude ter controle. Estou acabada, liquidada, sem forças.
Recolhi-me a este canto, onde me sinto tão segura. A vista, daqui de cima, é vertiginosa, mas tranquilizante, e estranhamente continuo sentindo-me segura aqui. Este ponto, de onde posso ver todos vivendo distraidamente, e de onde ninguém pode enxergar-me. Como é triste, desolador, sinto a solidão tomar conta de mim. Chegando, assim, de mansinho, tornando este apartamento vazio e sombrio. Este espaço, antes tão cheio de alegrias, cores e sons. Sinto, sinto, mas não consigo realmente acreditar. O luto é doloroso e solitário.
Confesso, talvez, eu seja realmente uma daquelas pessoas frias e insensíveis, nem ao menos uma única lágrima derramei. Insensível. Minhas glândulas lacrimais são demasiadamente orgulhosas para derramar sequer uma gota deste líquido salgado que escorre através dos olhos, quando a tristeza aperta.
Oh, querido, como pude deixar isto acontecer? Eu, antes tão zelosa e dedicada. Maldita pressa, maldita correria do dia-a-dia. Péssima hora em que optei por tornar insuportável nossa rotina. Dois empregos que garantiriam um futuro mais confortável e feliz? Agora, não vejo mais futuro, pelo menos o seu presente não existe mais.
Ao meu lado jazem os presentes que compramos pelo última vez, naquela loja que você tanto amava, as encomendas acabaram de chegar. Insensíveis, os entregadores que nem cogitaram a hipótese de levar embora estes pacotes, e ainda exigiram assinaturas, e a gorgeta, pelo “bom serviço”. Nem ao menos notaram meus olhos inchados, as olheiras marcadas, os cabelos armafanhados, as unhas lascadas, e meu pijama amarrotado. Ou fingiram que não notaram. Bom serviço? Onde está a humanidade e o bom senso? Digo e repito: o mundo está perdido.
Não preciso de sua pena, apenas de alguém para conversar, e contar nossas aventuras. Você era tão bom para mim. Você me fazia rir, amar, tolerar, chorar, conversar. Entendia-me perfeitamente, concordava comigo mesmo estando errada, e compartilhava as horas de medo sob um dia de tempestade. Como sinto falta de seu hálito em meu rosto e de suas brincadeiras bobas.
Poderia ter sido eu, ao invés de você. Eu tão apressada, era o alvo daquele carro, não você. Nosso caminho matinal. Tão acomodada à rotina, nem mais prestava atenção. Culpa minha. Você tão fiel amigo. Diziam que Dave não parecia ser nome de cão, mas você era mais que apenas um cachorro. Meu melhor amigo. Agora estou aqui novamente, compartilhando de meus medos com minha solidão.

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